sexta-feira, 24 de outubro de 2008


REVISTA FILOSÓFICA – "POSIÇÃO" (II)

"Essencialmente problemática, a Filosofia, no sentido mais puro da palavra e do significado, é aspiração sem fim à verdade e de forma alguma pretensão dogmática de a possuir e de a utilizar como travesseiro em que conclusa e definitivamente possam sossegar as inquietudes da razão. Por isso, o que importa é o filosofar e não as conclusões de qualquer filosofia, e, consequentemente se dêem condições propícias à gestação do esforço viril e criador de pensar pensamentos sem outro intento que não seja a sua densidade problemática, a sua coerência lógica, a sua consistência científica, a sua potencialidade explicativa (...)

Por isso, sob certo ponto de vista, a mente do filosófo fita o eterno, ou, pelo menos, o que se não restringe a um lugar e a um tempo, e sob outro, está enleada à vida profunda, à índole nativa e à temporalidade cultural da grei a que pertence. Como contemplador do eterno, talha por si próprio a posição mais coerente ou adopta meditada e conscienciosamente uma das muitas que sempre se oferecem e nunca, como na nossa época, se ofereceram tantas e tão diversas orientações e soluções que dão ao mundo filosófico de hoje a configuração de um imenso arraial de vozes onde é impossível captar a melodia do acordo; e como mente situada em dado lugar e tempo, o filosofo, que não o ceifeiro de filosofemas espigados noutro solo, é a voz profunda onde ressoa a alma do povo, cuja linguagem dá expressão ao seu pensamento e cuja índole nativa dá alento à sua sensibilidade e maneira de ser.

Se ambicionamos, pois, que a Filosofia venha a vicejar entre nós, alentada pela nossa Índole, orientada para a reflexão teórica e crítica dos problemas suscitados pela nossa actividade científica e cultural, nutrida pela seiva do pensamento desinteressado e cientificamente disciplinado, aberto e amplo, sem estreiteza nem exclusivismo, e que o seu desenvolvimento se não confunda com a crescença de transplantações adventícias nem com o requinte metafórico de subtilizações enfatuadas, cumpre começar pela preparação do terreno. A empresa é árdua, exigente, não tolera pausa nem descanso, e o seu ponto de partida tem de ser a aproximação de todos os que, deveras, sentem responsabilidades intelectuais e pensam que a teorização científica e filosófica não é intrínseca e necessariamente ideário e doutrinal, mas acima de tudo problematização e reflexão criticamente fundada -, filosofia de problemas e não filosofia de mistérios, filosofia de integração e de perspectivas gerais, e não filosofia teleológica e de verticalismo hierarquizante ou de vértice limitativo.

É com este anelo e nesta ordem de ideias que se apresenta a Revista Filosófica. O seu escopo outro não é que o veemente desejo de contribuir para que os nossos cientistas, historiadores da Cultura, pedagogistas, estetas e filósofos, responsáveis por igual do pensamento desinteressado, por um lado, se reúnam para confrontarem opiniões com mútua compreensão e, por outro, se isolem, para mais intimamente se recolherem «à tranquila morada do pensar», e da consciência que se interioriza ou da razão que se enfrenta consigo mesma desferirem «o voo do mocho de Minerva», no sempre belo dizer de Regel. (...)

É este o seu guião, e oxalá venha a ser o seu destino".

Joaquim de Carvalho, in "Posição", REVISTA FILOSÓFICA. Publicação quadrimestral de estudos filosóficos e históricos-científicos dirigida por Joaquim de Carvalho, Atlântida, Coimbra, nº1, Março de 1951

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