quarta-feira, 22 de outubro de 2008


JOÃO DE BARROS – por JOAQUIM DE CARVALHO (I)

"Já lá vão quarenta anos que o autor dêste estudo e o seu prefaciador de hoje traquinavam pela Praça Vélha, onde os nossos Pais labutavam pelo pão de cada dia e, podendo ser, pelo do dia seguinte; nessa quadra distante aprendemos ambos juntamente a utilizar as pernas e a desentaramelar a língua, socorrendo-nos mutuamente com tão constante ajuda que jamais se me apagou da memória a recordação das primeiras travessuras e das incipientes tagarelices.

Depois veio o apartamento, primeiro pela mudança de meus Pais para o Pinhal, após pela minha escolaridade, desenvolvida no colégio e em Coimbra. A separação de lugares interrompeu naturalmente o convívio da meninice, decorrendo mesmo muitos anos sem que nos víssemos e trocássemos palavra. Tão longo silêncio não extinguira a chama da amizade; latente e reprêsa, aguardava apenas a aragem propícia que a espevitasse e reacendesse. O ensejo ocorreu em 1925, com a comemoração do centenário de Camilo na Figueira; o notável empreendimento, a que o espírito e o prestígio do dr. José Calado deram vida e êxito, dissipou o véu que nos encobria, e, aproximando-nos de novo, revelou-me ao mesmo temto qualidades insuspeitadas do meu companheiro de infância.

Surpreendeu-me, com efeito, a viveza dos seus interêsses literários, e logo me cativou a seriedade com que êste autodidacta, sem formação escolar e sem os ócios que a fortuna proporciona, lograra educar-se, pondo ao serviço dos interesses morais da nossa terra as horas do seu descanso e o melhor do seu espírito. Daquela comemoração camiliana foi o cronista probo, escrevendo um opúsculo, em cuja modéstia se recatavam possibilidades de vôos mais altos e se adivinhava uma pujante ambição literária, que o autodidactismo tanto podia conduzir à futilidade atrevida e insignificante, como ao trabalho sério e consciencioso. Á mercê de um naufrágio intelectual, tão freqüente nos nossos pequenos meios provincianos, salvou-o o sentimento da admiração, sem o qual a vida interior se consome em efémeras cintilações".

[CONTINUA]

Joaquim de Carvalho, in prefácio "João Barros Ensaio Literário e Bibliográfico", de Carlos Sombrio, Tipografia Popular, Figueira da Foz, 1936, p. 3 - sublinhados, nossos

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