domingo, 2 de novembro de 2008


BIBLIOTECA DE D. MANUEL II - por JOAQUIM DE CARVALHO

"Nunca esquecerei as horas breves de regalo que passei em Vila Viçosa no folhear de alguns livros do Rei D. Manuel II. Conto-as entre as mais agradáveis no já aturado trato que a Boa-Fortuna me permite manter desde a adolescência com livros de vária casta, índole e feitio.

O livro, é, porventura, um dos maiores tóxicos do civilizado, envenenando-o e, sobretudo, afastando-o de si próprio e do convívio com as coisas simples da Natureza, fora das quais a simplicidade não raro faz figura de impostora. Não há dúvida, pelo menos para mim, que começo a dar-me conta da inutilidade da maior parte deles, bem entendido depois de os ter visto e percorrido, quanto mais não seja em diagonal; mas descobrem às vezes coisas agradáveis, e os de Vila Viçosa, os do Rei D. Manuel II, claro está, revelaram-me duas coisas que raras vezes se oferecem juntas. Descobri em primeiro lugar um Homem que viveu intimamente, em perfeita lealdade consigo mesmo, o juramento que prestara ao País de o servir como Monarca Constitucional e na melancolia do exílio, em vez de deixar mirrar a alma na estreiteza corrosiva do ressentimento e da desforra, procurou alegrá-la na convivência dos livros, os «amigos silenciosos, como ele próprio disse, junto dos quais se aprende a grande lição da vida». E descobri, em segundo lugar, ou mais própriamente, conheci de visu, os livros de um bibliófilo da mais pura e devotada afeição (...)

Cada livro que o bibliófilo arruma na estante, no lugar próprio da colecção, tem sempre uma «história», às vezes movimentada e divertida como as partidas de caça, outras vezes repousada e soporífera como o chamado desporto da pesca à cana, que eu imagino ser o símbolo da união da paciência negligente ao proveito sem esforço. A conversação íntima para que eles convidam também nada tem de comum com a nomeada dos livros que andam na mão de toda a gente. Suscitam outros pensamentos e falas, e isto, com ser muito é quase nada perante a variedade das emoções, da alacridade do entusiasmo ao travo da renúncia e dos sacrifícios, que fazem de muitos deles pedaços de alma e projecção espiritual de quem os reuniu. Sejam de reis, de milionários, ou de remediados que tudo sacrifiquem ao prazer, às vezes maníaco e não raro repreensível, da posse ciumenta, ali à mão, do livro raro, do informe desconhecido, da prova decisiva que os outros buscam e ignoram, os livros dos bibliófilos nunca são os livros de toda a gente e sempre têm que contar. São sempre os livros de alguém, e como os indivíduos de gente limpa deve saber-se de onde vêm, e possuem uma genealogia, constituída pela raridade, pela sumptuosidade das enca dernações ou ainda pelo pertence dos sucessivos possuidores. Oh! A deliciosa responsabilidade de afagar livros raros oferecidos por grandes nomes, com o encargo moral de os transmitir por morte a quem seja digno de os apreciar e conservar! (...)" [ler mais AQUI]

Dr. Joaquim de Carvalho, in prólogo a MONUMENTOS DE CULTURA E DA ARTE TIPOGRÁFICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI EXISTENTES NA BIBLIOTECA DE D. MANUEL II, Lisboa, 1948

via Bibliomanias - Biblioteca de D. Manuel II

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