sexta-feira, 24 de outubro de 2008


REVISTA FILOSÓFICA – "POSIÇÃO" (I)

O trânsito do século passado para o actual apresenta-se entre nós com evidentes feições de conformidade doutrinal.
Com raras excepções, o laboratório, a cátedra e a escrivaninha coincidiam geralmente num conjunto de tópicos fundamentais acerca da teoria do Saber, do sentido da História que o homem tece e destece e da concepção do Mundo. Todas as grandes afirmações intelectuais dessa quadra, os escritos de Teófilo Braga, de Gomes Teixeira, de Serrano, de Júlio de Matos, de Júlio Henriques, de Gama Barros, de Leite de Vasconcelos, de Adolfo Coelho, de Braamcamp Freire, etc., nasceram e amadureceram à luz quente do mesmo conceito de positividade e, com serem diversas no teor e no objecto, procuraram atingir o conhecimento das relações matemáticas, dos seres naturais, do acontecer histórico e das manifestações da psique humana com a mesma atitude metodológica e com o mesmo sentido doutrinal.

Adentrado o século em que vivemos, e cuja configuração intelectual começou a definir-se após a convulsão da primeira guerra mundial, à conformidade seguiu-se o desacordo. Nenhuma outra síntese filosófica ou teoria da Ciência logrou a aceitação, que o Positivismo e o Evolucionismo haviam alcançado, e daí a situação actual em que o saber e o filosofar se confinam como que em mundos indiferentes de curvatura cerrada, sem janelas nem miradoiros (...)

A situação cultural que vivemos não é, porém, superável pela ressurreição ou pela importação de qualquer sistematização doutrinal, a qual poderia apresentar-se com justificação política, mas nunca seria uma solução à altura dos tempos e das responsabilidades de um Povo que deve reconhecer-se livre e digno na ordem do pensamento como se reconhece livre e digno na ordem da sensibilidade e da acção.

Jamais povo algum conquistou a sua personalidade espiritual confinando-se dentro de muralhas, nem robusteceu a sua vitalidade com a assepsia de todos os alimentos; mas também povo algum afirmou a sua capacidade intelectual importando o pensar alheio, nem progrediu com o estímulo frígido do cosmopolitismo. A constituição da nossa cultura filosófica, como traço de conexão da nossa mentalidade e dos nossos problemas com o pensamento universal e com as concepções acrónicas e atemporais, que tecem a História da Filosofia, tem de arrancar do nosso substrato e de se exprimir com a fala com que nos entendemos. Com vacilação ou com ânimo resoluto, temos de partir de nós mesmos, e bem firmes nos problemas e anelos da nossa consciência intelectual, empreender a custosa tarefa de os esclarecer racionalmente, com o alento da nossa maneira de ser e de olhos fitos no conhecimento científico e respectivas pressuposições e implicações (...)

[CONTINUA]

Joaquim de Carvalho, in "Posição", REVISTA FILOSÓFICA. Publicação quadrimestral de estudos filosóficos e históricos-científicos dirigida por Joaquim de Carvalho, Atlântida, Coimbra, nº1, Março de 1951

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